Sabes? Vou contar-te mais uma história. Uma história que inventei há já bastante tempo e que ao inventá-la, lembrei-me da minha avó, que contava histórias como ninguém e todas inventadas por ela. A história que a minha avó contava, sobre um rato e um gato, no tempo da guerra, tinha muita profundidade, reconheço-o agora. Por isso, como vivemos sempre entre guerras diferentes e de diferenças, não resisti.
Pois bem, como todas as histórias e para ser história, era uma vez…
Tinha havido no verão um grande incêndio nas matas do monte. As pedras enegrecidas nem pareciam pedras, mas pedaços enormes de carvão. O Verão tinha sido quente e por isso maléfico para as matas e florestas. O Inverno fora frio e chuvoso e com o chegar da Primavera, umas envergonhadas ervinhas espreitavam aqui e além.
Uma joaninha atrevia-se a deambular por um lado e por outro em busca de alimento e nem se apercebia dos perigos que a qualquer momento a poderiam privar de continuar a sua deambulação.
Passada por aqui, passada por ali, um esvoaçar para mais longe e de repente uma pedra grande, muito grande e escura, muito escura. Tão escura que nem se apercebeu de um imenso lacrau, também escuro e até um pouco encarquilhado, escondido numa reentrância da rocha…
A joaninha esvoaçou assustada, mas com curiosidade voltou a aproximar-se e atreveu-se a olhá-lo mais de perto… afinal era mais um companheiro daquela área tão empobrecida pelo fogo e que poderia estar a passar um mau bocado.
À cautela e sempre pronta para accionar o seu sistema de voo, a joaninha, aproximou-se. Muito baixinho exclamou: “ que grande és!” “se calhar tens fome e até me podes comer…”
O escorpião, tão enfraquecido que estava, nem ergueu a sua cauda em posição de ataque/defesa… deixou as turqueses estendidas na pedra e elevando os olhitos mortiços, balbuciou algo imperceptível”… sim, tenho fome e ainda mal posso caminhar. Tenho duas patas doentes, que queimei, quando corri para apanhar um alimento… nem percebi que ainda estava quente a terra que pisava…”
Aqui começou a odisseia da corajosa joaninha. Correu e esvoaçou pelas redondezas e num esforço incomensurável, conseguiu levar ao pobre habitante da área o que admitiu ser um pouco de conforto para o estômago dele.
Nunca havia admitido que um escorpião pudesse ser reconhecido, que pudesse mesmo ter um rasgo de amabilidade, mas foi isso mesmo que aconteceu. O escorpião agradeceu à joaninha o seu esforço e como prova de reconhecimento, ofereceu um pouco do seu espaço, para que de noite ela se pudesse resguardar de quaisquer predadores, que também vagueassem pela zona.
Nos dias seguintes, joaninha e escorpião, caminhavam juntos por um e outro lado, regressando à caverna na rocha negra do incêndio do Verão anterior. Ao cabo de algumas semanas, poderemos dizer que eram inseparáveis.
Cheia de ternura para quem já considerava um amigo, a joaninha era incansável. Por sua vez o escorpião, com uma forma de estar muito própria, não deixava de ver a joaninha como a sua tábua de salvação, a sua aliada, mesmo quando tinha de atacar para comer.
Juntos, inacreditavelmente aproximados um do outro, joaninha e escorpião, sobreviveram à Primavera e ao verão, sem que qualquer anormalidade os tivesse separado.
Solitário, ainda magoado, mas sem perder as características da sua espécie, o escorpião sentia “ganas” de enxotar a joaninha, que o percebia, mas fingindo nada entender, continuava a sua obra de “boa samaritana”. Os tempos continuaram a passar, como quem folheia um livro e certa manhã, cedo, como regra naquelas áreas, para quem necessita encontrar subsistência, o escorpião ao sair do esconderijo, toca na joaninha, como que afagando as asas quitinosas e sarapintadas, e segredando-lhe que jamais iria deixar de estar perto dela. Algo muito forte fazia com que se sentisse atraído por ela…
Coitada da joaninha! O primeiro pensamento que teve foi o de que lhe restaria pouco tempo… iria ser caçada. Mas o escorpião, terno como uma pétala de rosa, bichanou junto às antenas da assustada joaninha, que mesmo de diferentes espécies, o que lhe tinha era amor. Na Natureza, é assim. Espécies diferentes apoiam-se, espécies diferentes juntam-se em grupos de ajuda, em reconhecimento da defesa da continuidade.
Na minha história é assim. Na minha história ambos viviam juntos sem que cada um deixasse de ser o que era, sem que cada um deixasse de respeitar o que o outro queria. Um entendimento perfeito… Havia mesmo Amor entre aqueles dois “bichinhos”. Na realidade, nem tudo se passa assim, pois os predadores nem sempre são salvos pelas suas possíveis presas…