sábado, agosto 13, 2005

UMA SESSÃO COM MAGDA



Magda entrou e sentou-se. O olhar era estranho, ausente e triste mas simultaneamente confuso. Parecia assustada. Nunca vira Magda entrar assim no meu consultório.

Pedi à Mafaldinha que deixasse um jarro de água e um copo na mesa de centro e saí da minha secretária e fui sentar-me perto de Magda, no sofá em L que tenho num dos cantos do consultório.

Magda abandonou as mãos no regaço e balbuciou palavras ininteligíveis… qualquer coisa como quero esquecer, não posso mais viver assim…

Ofereci-lhe água, deixei-a acender o cigarro habitual das sessões mais agitadas e proporcionei-lhe o silêncio que necessitava para arrumar as ideias ou talvez não; talvez apenas para escolher as palavras com que queria abordar o assunto que a deixava tão insegura.

Magda começou a falar, um pouco mais rapidamente do que o habitual, mas sem me olhar. Pareceu-me que estava indecisa se havia ou não de me contar… mas se o não fizesse, como poderia eu ajudá-la a superar o mau momento que se estava cruzando com ela?

Passara a primeira meia hora da sessão quando Magda pediu para acender um segundo cigarro e deixando-se de rodeios começou a relatar os factos que a estavam deixando tão instável.

Assim, Magda contou-me que passara mais um aniversário de seu casamento, dentro de um absoluto silêncio e de recusa de ver quem quer que fosse. Chorara todo o dia, de raiva, de revolta, de insegurança e de desespero, porque ao final de tanto tempo, nunca conseguira ultrapassar todas as dúvidas e ressentimentos que acumulara. Chegou a dizer-me que se detestava, porque não conseguia ter coragem de enfrentar todas as realidades que a estavam a agredir… o seu relacionamento sexual com o marido, ponto fulcral, era uma farsa. Uma nojenta farsa repetiu, com as lágrimas bailando à volta dos olhos. Levara décadas a sentir isso, e quando disse ao marido o que se passava, para tentar salvar o seu lar, ele apenas lhe disse que isso era assim mesmo…apenas podia dizer-lhe que procurasse um outro homem, que fizessem sexo para saber como era com outro. A única condição imposta seria contar-lhe tudo depois…

Magda soluçou…como poderia ela, sensível como era, fazer sexo com alguém, só por fazer… já o fazia em casa, quando era obrigada…

Magda levantou-se. Ainda mais agitada, encheu de novo o copo de água e acendeu o terceiro cigarro…havia passado uma hora de sessão…

Pedi-lhe que se acalmasse e desviei o tema da conversa para umas banalidades e falei-lhe de que o caso dela não era o único, uma vez que, infelizmente, muitos homens com idades compreendidas entre os cinquenta e os sessenta anos, devido a erros de educação e ignorância, não interpretavam os sentires das mulheres como coisa séria…

Magda voltou a sentar-se e depois de alisar as calças, recomeçou. Muito mais calma, mas mesmo assim a medo, revelou-me o que eu já havia equacionado através de dados anteriores… Magda conhecera alguém… mas o que não sabia, era o que Magda ia contar… e à medida que as palavras lhe iam saindo, como que ressaltando degraus, eu ia ficando mais preocupada…pensei que teria de ter uma conversa com o ídolo de Magda.

Magda revelou-me sentir-se profundamente atraída por um amigo da filha, jovem, mas mais velho do que esta e colega, que viera para estagiar numa matéria que estudaram no estrangeiro, onde se haviam conhecido. Contudo, os contornos do relacionamento eram deveras confusos, por todos os motivos que Magda me revelou. Não podia acrescentar muito mais, mas sugeri que Magda fosse viajar para reflectir se o que estava a tentar, estava de acordo com a sua maneira de pensar…voltaram as frustrações, as inseguranças e o choro descontrolado.

Duas horas! Felizmente que não tinha mais pacientes na sala de espera. Então ocorreu-me convidar Magda para sairmos do consultório e irmos até uma sala de chá, para que o ambiente se tornasse mais acolhedor e menos formal, de forma a fazê-la observar outro meio e sentir-se mais liberta do estado de tenção em que se encontrava.

Magda fez questão de ir ao “Bico Dourado”, explicando que era um lugar calmo, com música ambiente e que ao final da tarde poucas pessoas costumavam estar por lá e por isso poderia sentir-se mais à vontade. Acedi e depois de darmos umas voltas ao quarteirão, conseguimos estacionar.

Eram dezoito e trinta. A penumbra da sala, com um pianista a um dos cantos, sobre um estrado e tocando num piano de cauda, fez-me sentir como se estivesse a ver um filme. Magda dirigiu-se para o canto oposto, para a mesa que me pareceu ser a costumada. Mas como estivesse ocupada por dois homens, ficámos numa outra perto, tendo os dois indivíduos de costas para nós. Magda ficou agitada, mas sentou-se.

Passados alguns minutos, depois de termos feito o nosso pedido de um chá verde, começámos a falar da decoração da sala, por sinal muito original, quando Magda me chamou a atenção para os carinhos entre os dois senhores que estavam na tal mesa, aliás, mesa que costumava ser ocupada por Magda e pelo tal colega da filha, quando ao fim da tarde se juntavam para conversar, segundo me revelou. Quando um dos jovens se levantou e ficou de perfil, Magda empalideceu, e começaram a correr-lhe duas grossas lágrimas pela face. Peguei-lhe na mão e acalmei-a, tentando saber o que se estava a passar.

Quando ele cruzou a nossa mesa, dirigindo-se aos lavabos, baixou-se e beijou-a com um simpático olá, mas sem dar oportunidade para apresentações, e seguiu. Então estava tudo explicado!

Chorou-me a alma, porque vi Magda numa situação muito semelhante àquela que havia tido aquando ainda estudante, mas que felizmente nunca deixáramos de ser amigos…em tudo!

A minha dificuldade era fazer Magda compreender e aceitar o jovem, tal como ele era e que deveria apoiá-lo e não tecer críticas ou depreciá-lo. Se o amava como acabara de revelar, isso em nada prejudicaria um sentimento tão nobre. Não podia ver as coisas como em décadas anteriores, em que os tabus e o desconhecimento levavam a que as pessoas banissem do seu relacionamento os que eram menos iguais.

Sem ter pensado qual seria o rumo da conversa, comecei a “dar uma aula”, explicando o que a natureza pode fazer, sem que nós possamos interferir. Tentei fazê-la entender que o facto de se ser assim ou de outra maneira, não somos nós que o queremos, mas sim fruto de consequências genéticas, do desenvolvimento e do ambiente em que se desenrola todo o crescimento do ser humano.

Magda olhava-me incrédula, mas ia abanando a cabeça e acabou por revelar que já se havia envolvido com o jovem arquitecto em intimidades e era isso que a estava a importunar. Não aceitava que ele fizesse aquela duplicidade de actuações.

Uma vez mais tentei explicar a Magda que o seu caso não era o único e nem por isso as pessoas deixavam de ser felizes. Ou aceitava ou rejeitava, mas deveria pensar bem, porque ela própria poderia estar a exercer um papel de equilíbrio e não era justo pensar de outra forma, apenas com um alerta: a saúde de ambos.

Magda olhou o relógio e disse que tinha de regressar a casa. Levei-a à porta, onde já havia ido por diversas vezes em outras consultas, logo pelos primeiros meses em que iniciáramos as sessões.

Pedi a Magda que voltasse ao consultório dois dias depois. Tinha de estudar alguns detalhes, porque Magda estava muito agitada e podia reiniciar a depressão que estava tratando há meses.
2005, August

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