quinta-feira, março 22, 2007

ÚLTIMA FOLHA




Folheio a minha vida como se de um livro se tratasse. Um livro com muitas folhas. Um livro com a síntese de muitos outros livros que li, e que fui deixando na estante e que volta não volta releio e deixo que algumas passagens se misturem com as do meu próprio livro.

Amareleceu a capa do meu livro por ter sido lido vezes sem conta, ao longo de tantas décadas. Foram sendo lidas e relidas algumas páginas, para que não me repetisse em erros de interpretação ou me tornasse repetitiva, caso viesse também a ser lida.

Mas ninguém leu o meu livro até hoje. Ninguém o vai ler no futuro, porque este livro vai ser transformado em cinza, como eu… porque o meu livro sou eu.

Hoje reparei que estava na última folha. Duas páginas para fechar a contracapa. É isso mesmo. Não vou escrever nem mais um parágrafo, após ler a última linha do último parágrafo. Este será o último e apenas a palavra fim (the end), como nos filmes, vai aparecer ao fechá-lo.

Idealizei dá-lo a ler. Idealizei que o lerias com a curiosidade de quem gosta de livros. Idealizei que o comentaríamos conjuntamente. Idealizei que o prologo fosse com palavras tuas e que o epílogo também fosse… mas não será, nem como homenagem póstuma…

Depois do livro ardido, depois de sopradas as suas cinzas, rir-me-ei do teu desespero, por nem teres querido ler as muitas páginas que te eram dedicadas… por nunca saberes o que nelas era dito… ficarão em segredo; o segredo, do que foi a minha vida…

E se por acaso, alguma vez por esquecimento, deixei umas linhas deste longo livro, por aí e as leste, esquece. Ignora o seu conteúdo. Ignora que fui um dos livros que não leste… e que nunca irás ler…

Suportei a afronta de lhe chamares “brochura barata”. De ser fora de tempo (para não lhe chamares declaradamente velha). De desfeitear
a minha escrita, as minhas cãs e outros vestígios de antiguidade…

E por tudo isso e por nunca teres aceite escrever para mim, como tantas vezes pedi, agora vai ser tarde para um retrocesso… não haverá mais livro, nem existirei eu…



22.03.07

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