quinta-feira, fevereiro 03, 2005

CINCO ANOS DEPOIS

- Cinco anos... cinco longos anos... Como o tempo passa! – murmurou Nitush, ainda com os olhos fixos na folha do Diário que estava lendo. O seu diário. O diário que escrevera havia cinco anos. Havia-o começado precisamente a onze de Agosto de 1958.

Virou mais umas folhas e leu o que escrevera um ano depois. Um ano após aquele belo dia...
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“Ao escrever hoje, mais uma folha neste meu Diário, recordo com saudade a primeira vez que o fiz. Foi há um ano. Um ano... parece-me que foi ontem... e já passou um ano...
Recordo a excitação, a emoção em que eu estava, ao escrever-te meu Diário! Como foi bela aquela manhã de Agosto! Como quente e prometedor estava aquele dia de sol!...
Ainda oiço sua voz me murmurar baixinho, naquele tom que lhe é peculiar “Quer a minha fotografia?” ...”Malcriado!...” Repliquei ofendida. E finalmente, hoje, sinto-me feliz por tê-lo ouvido.
“Vou telefonar-lhe. Deve estar a jantar. Vai ficar encantado!...”
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Como ficaria encantado! Se agora pudesse acreditar!... Tanta mentira, tanto sonho, tanta desilusão... – bocejava Nitush, enquanto uma lágrima teimosa lhe corria pela face e um soluço e estremeceu.

Folheou mais uma página do Diário e leu o que escrevera três anos após o primeiro encontro.
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“Meu bem, nesta folha do meu Diário, hoje, vou inserir além de alguns pensamentos, a ideia que tive de revelar nosso amor e nossos projectos a nossos pais. Não penses em adiar mais uma vez. Lembra-te que há três anos que caminhamos na sombra. Sejamos razoáveis. Porquê serás tu tão egoísta, meu Deus?!
“Quando um dia a nossa Tété nascer” – disseste tu – desejo que seja muito parecida contigo”. Mas, meu bem se soubesses que estou condenada a não ter filhos! Nada te direi. Deus há-de fazer o milagre! Tenho esperança... Nosso amor transporerá todas as muralhas e far-nos-à esquecer nossas mágoas.
Hoje, ao fazer mais um ano que nos conhecemos, lamento não ter possibilidade de te telefonar, mas outro dia o farei. Porém, se algum dia leres estas páginas saberás o porquê de o não ter feito. Estou doente...”
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- Não o saberá jamais! – murmurava Nitush com as lágrimas nos olhos – tudo acabou! Este Diário, o meu Diário, única testemunha deste amor, que morreu, será queimado...

Levantou-se acendeu um cigarro. Preparava um whisky, deu dois passos na sala e voltou à escrivaninha onde o Diário de capa de cabedal e folhas douradas jazia. O Diário onde anotara seus pensamentos, seus desejos e suas desditas. Onde os seus mais íntimos assinaram.
Quem diria!... Ao fim de tanto tempo... Cinco anos!

Passou mais folhas. Uma, duas, três. Todas as que faltavam até ao último dia que escrevera. Releu o que já sabia quase de cor...
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“Ao escrever no dia de hoje, a página do meu Diário, revelo meu último pensamento, conjugado com os acontecimentos finais. Se nada se alterar, que fazer? Para quê te continuar a escrever, meu Diário? Se os sonhos morrem sem estarem realizados, se a esperança está perdida?

Há seis meses que te afastaste. Seis meses para fazerem cinco anos que nos conhecemos. Afastaste-te quando eu já esperava ser a tua esposa...

Com quanta ternura bordei as peças mais delicadas do enxoval, que iria testemunhar nossa felicidade!... Mas tudo acabou, creio. Para quê continuar? Lamento-te meu querido Diário. Mas vou queimar-te. Não quero que jamais alguém tome conhecimento dos meus fracassos. Ficarei eternamente noiva... A religião será meu refúgio. Lá a Deus pedirei por ti, que te perdoe o me teres mentido. Me teres abandonado. O teres assassinado meu sonho. Esquecerei o mundo, e ele de mim se esquecerá. Quando no claustro ler meu missal, e o éco dos meus passos escutar, não penses que olharei pensando que és tu. Nessa altura, mesmo que sejas, irás tarde demais... Adeus...
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-“Como me modifiquei!... Tudo foi um sonho mau. Outro amor encontrei...

Nitush fechou o Diário. Olhou-o de novo. Pegou-lhe e levou-o até ao fogão de sala onde ateara o lume. O ar quente fê-la recuar. Abriu a janela.

O fogo crepitava. Lançou-lhe o Diário. Viu as chamas acariciá-lo, envolvê-lo. Depois devorá-lo. Primeiro docemente, depois ferozmente. Viu-o enfim em cinzas. A chama apagou-se. A falta do seu brilho resplandecente fez Nitush voltar à realidade. Uma lágrima teimosa ainda lhe deslizou pela face pois aquele amor estava a deixar uma profunda cicatriz e uma dúvida sem tamanho, se algum dia o iria esquecer.

Num gesto peculiar Nitush viu as horas. “- já?!... como o tempo passa... cinco horas!... Vou chegar atrasada à modista... como é belo o meu vestido de noivado...

E enquanto se preparava para sair, Nitush idealizou a felicidade que gostaria de vir a sentir, para esquecer as desditas do passado ainda tão recente...

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