sábado, maio 14, 2005

AUGÚRIOS DE DESESPERO

A vereda apertada dava para uma ravina abrupta entre a terra e o mar. Os penhascos eram medonhos. O mar lá muito em baixo, era batido e a espuma branca parecia roupa branca em desalinho. Mergulhei os olhos naquela imensidão e perdi o pensamento em pensamentos loucos… e se mergulhasse?...

Faltaria ao encontro e perderia a única possibilidade que me restava de escutar o que tinhas para me dizer. Muito embora não estivesse profundamente interessada em sabê-lo, contudo a curiosidade angustiava-me.

Eu sentia, eu sabia, porque uma música interior soava baixinho, como marcha fúnebre. O convite para ir à casa da colina, era apenas, para uma vez mais, me amarfanhares a sensibilidade e desrespeitares o meu puro sentimento de amor.

Os líquenes das rochas pareciam belos arabescos de uma pintura abstracta de algum pintor célebre. O piar das gaivotas, por momentos, pareceu-me de mau agoiro e hesitei, se havia ou não de seguir o meu caminho. Procurara o caminho pela vereda, para não seguir pela estrada, nem tão pouco ter a tentação de ir de automóvel. Poder-me-ia cruzar com quem não desejava ver, fosse em que circunstância fosse e o facto de me chamares à casa da colina, poderia ser por já te encontrares lá, por terem estado juntos.

Memorizei uma vez mais o que queria dizer. Revi mentalmente o papel que ia interpretar. Não podia falhar nem numa vírgula. Clarificar posições; esclarecer dúvidas e demarcar a minha distância. Eu não aprovava de forma nenhuma a ambiguidade daquela relação. Não por ser o que era, mas por ser com quem era… Jogando sujo, despersonalizando, manobrando, enfim, um todo de negatividades que prejudicavam mais do que beneficiavam.

Não me restavam dúvidas que era o amor da tua vida. Nem por hipótese, alguma vez tentei sobrepor-me, mas nunca consegui aceitar. O duplo papel que me permiti interpretar, só teve como finalidade mostrar o lado negativo e avassalador que tinha sobre ti. Mas tu sempre tiveste consciência disso e por tal assumes essa responsabilidade.

À medida que ia subindo a caminho da casa da colina, mais tensa me sentia. Ia certamente ouvir o que mais desejava não ouvir. Iria deitar morro abaixo, um ror de sonhos e de ilusões que construíra, estupidamente, confiando nos meus valores e nos dotes que sempre supusera ter…

A casa estava com pouca iluminação. Bati e entrei, pois apenas o trinco me separou do lado de fora para o lado de dentro. Beijei-te e senti-te transpirado e com aquele detestável cheiro a after shave, que já conhecia de outras vezes que nos encontráramos no momento seguinte…

Como era possível? Como é que eu havia aceite? Mas estava pronta para ouvir o veredicto.

Não me encaraste nos olhos como das outras vezes. Estavas esbodegado e abatido e teu olhar distante era mais do que revelador de tudo o que anteriormente havia recebido quase com naturalidade. Mas hoje não. Nem mais uma vez. Não conseguia admitir que estava em segundo plano.

O golpe não foi tão agreste quanto eu vinha imaginando, caminho fora, talvez por vir preparada. Mas foi mesmo um profundo choque, quando friamente revelaste que a escolha estava feita. A tua expressão abnegada de escravo, comoveu-me e mais por ti do que por mim, tive uma vontade imensa de chorar.

É verdade. A escolha estava feita. Alguém havia saído vitorioso. Quem seriam as próximas vítimas a servirem de fetiche, para as vossas orgias? Quem mais iria sofrer, aceitando o papel que interpretei durante tantos anos…?

Não fora necessário relembrar o que levara o caminho todo a arquitectar. Nem houve muito tempo para me fazer ouvir. Saí quase de imediato. Cabisbaixa e tão triste, que nem me apercebi que toda a vereda foi caminhada por tacto, pois era noite cerrada…

Passados que são, os tempos que já lá vão, continuo sonhando que um dia me chamará para voltar à casa da colina, mas sem que tenha lá estado alguém, antes de mim…


13.05.05

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